J. Bras. Nefrol. 2009;31(2):147-50.

Síndrome de dor óssea induzida por tacrolimo pós-transplante renal: relato de caso e revisão da literatura

Hélio Vida Cassi, Sérgio Godoy Marks, José Rubens M. M. Carvalho, Rocyr André Visinoni

Resumo:

Objetivo: Relatar um caso de síndrome de dor óssea induzida por inibidores da calcineurina. Relato de caso: Paciente masculino de 54 anos, branco, foi que submetido a transplante renal haploidêntico e, ao fim do terceiro mês pós-transplante, apresentou dor espontânea, de forte intensidade, em joelhos, tornozelos e pés, de maneira simétrica, com incapacidade funcional, induzida por inibidores da calcineurina. O diagnóstico foi comprovado por ressonância magnética e cintilografia óssea. Evolução: Houve remissão espontânea e completa dos sintomas no fim do sexto mês após o transplante. Conclusão: A síndrome de dor osteoarticular induzida por inibidores da calcineurina é uma condição clínica incomum, mas que pode comprometer a qualidade de vida e a boa evolução do paciente transplantado. Seu diagnóstico correto deve ser feito prontamente por meio de estudos de ressonância magnética e de cintilografia óssea.

Descritores: tacrolimo, ciclosporina, transplante renal, dor óssea, inibidores da calcineurina.

Abstract:

Objective: To present a case of calcineurin inhibitor-induced bone pain syndrome. Case report: A 54-year-old Caucasian male patient underwent a haploidentical kidney transplant and, at the end of the third postoperative month, developed severe, spontaneous, symmetrical pain in his knees, ankles, and feet, associated with functional impairment, induced by calcineurin inhibitors. The diagnosis was confirmed by MRI and bone scan. Evolution: The patient presented spontaneous remission of symptoms at the end of the sixth postoperative month. Conclusion: Calcineurin inhibitorinduced bone pain syndrome is an uncommon clinical condition, but it can impair the quality of life and good evolution of transplant recipients. Correct and prompt diagnosis with MRI and bone scan is recommended.

Descriptors: tacrolimus, cyclosporine, renal transplant, bone pain, calcineurin inhibitors.

INTRODUÇÃO

A utilização de inibidores da calcineurina para prevenção da rejeição em transplantes tem sido cada vez maior nos últimos 30 anos, proporcionando o aparecimento de complicações.

A síndrome da dor osteoarticular em membros inferiores foi descrita na década de 1990,1 relacionada inicialmente ao uso da ciclosporina, em transplantes de órgãos sólidos. Mais tarde, foram descritos casos também com o emprego de tacrolimo2 e em transplantes de medula óssea.3 

A síndrome de dor induzida por inibidor de calcineurina é uma complicação rara, que se caracteriza pelo aparecimento de dor espontânea, de forte intensidade, em membros inferiores, bilateralmente, em joelhos, tornozelos e pés, muitas vezes com incapacitação funcional,5 usualmente nos primeiros seis meses pós-transplante.

RELATO DE CASO

Paciente portador de insuficiência renal crônica (IRC) de etiologia não definida, de 54 anos de idade, médico, residente em Curitiba, submetido a transplante renal com doador vivo haploidêntico, recebendo imunossupressão tripla, com prednisona 0,6 mg/kg/dia, micofenolato sódico 720 mg 2 vezes ao dia e tacrolimo 0,13 mg/kg/dia, além de basiliximab no primeiro e quarto dias após a cirurgia. Recebeu alta no sexto dia pós-operatório, com creatinina de 1,3 mg/dL, encontrando-se normotenso.

Nesta ocasião, apresentava nível plasmático de tacrolimo de 26,2 ng/mL. A dose foi diminuída para 0,10 mg/kg/dia, com o controle mostrando níveis de 6,60 ng/mL. Mantinha creatinina plasmática de 1,19 mg/dL, sendo iniciada a administração de sinvastatina, 20 mg/dia, para tratamento da hipercolesterolemia.

No final do segundo mês, a creatinina se elevou para 1,82 mg/dL, chegando uma semana depois a 2,86 mg/dL. A dose de tacrolimo foi novamente diminuída, atingindo 0,08 mg/kg/dia, com a creatinina se estabilizando ao redor de 1,0 mg/dL e a tacrolinemia, 8 ng/mL.

Ao término do terceiro mês, o paciente apresentou dor inicialmente no joelho esquerdo. Em alguns dias, a dor passou a ser bilateral, de forte intensidade, causando dificuldade para locomoção, principalmente ao subir e descer escadas. Embora houvesse algum alívio com o repouso, a dor era persistente mesmo durante a noite. Referia sensação de aumento de volume nos joelhos, que não melhorou com uso de analgésicos comuns. A seguir, a dor passou a ser sentida também no dorso dos pés e tornozelos, com maior incapacidade funcional. Não havia sinais flogísticos nas articulações citadas, apenas dor à palpação.

Apresentava PCR normal; PTH = 159 pg/mL; DHL normal; ácido úrico = 5,33 mg/dL; látex normal; VHS = 5 mm; FAN negativo. Creatinina se mantinha ao redor de 1,0 mg/dL e nível plasmático de tacrolimo, 8 ng/mL.

Realizada a ressonância magnética de joelho esquerdo, observou-se moderado derrame articular com lesão subcondral no côndilo femoral medial (Figura 1), associado a extensa área de edema do osso trabecular adjacente (Figura 2). Também foi realizada uma cintilografia óssea, na qual se notou aumento da concentração do radiofármaco nos côndilos medial e lateral dos fêmures, na região lateral do platô da tíbia direita e nos tarsos (Figura 3).


Figura 1. RM joelho esquerdo, corte sagital, FSE T2, com supressão de gordura, que demonstra derrame articular e edema ósseo no côndilo femoral medial (setas).
Figura 2. RM joelho esquerdo, corte coronal FSE PD com supressão de gordura, que mostra extensa área de edema ósseo no côndilo femoral medial e de partes moles adjacentes. A dor persistiu até meados do quarto mês, quando diminuiu progressivamente de intensidade, praticamente desaparecendo no final do sexto mês após o transplante.
Figura 3. Cintilografia óssea mostrando grande concentração do radio fármaco em joelhos e tarsos.

DISCUSSÃO 

Relatamos um caso de síndrome de dor óssea, induzida por inibidor de calcineurina, em paciente transplantado renal. Trata-se de uma síndrome rara, descrita pela primeira vez em 1991, em pacientes imunossuprimidos com ciclosporina.1 

Dor importante nos joelhos, tornozelos e pés, que melhora com o repouso, é o sintoma preponderante. O exame físico é normal, a não ser por dor à palpação das áreas afetadas, sem presença de sinais inflamatórios.1,5,7 

O paciente descrito apresentou quadro de nefrotoxicidade, com níveis elevados de tacrolimo antes do começo dos sintomas. A creatinina, que chegara a 2,8 mg/dL, voltou a valores normais após a redução da dose do medicamento.

DIAGNÓSTICO

O principal diagnóstico diferencial de dor óssea induzida por tacrolimo é com a osteonecrose ou necrose asséptica, que ocorre em transplantados que receberam altas doses de corticosteroides.10 Nesse caso, a dor é, em geral, proximal, e não há resolução espontânea sem sequelas.

Complicações neurológicas em pacientes transplantados que recebem ciclosporina ou tacrolimo são referidas em até 20% dos casos, incluindo tonturas, tremores, disestesias, alterações no estado mental, encefalopatia, entre outras.4 Achados similares podem ser também observados na distrofia simpaticorreflexa, mas o aumento de temperatura nas áreas dolorosas e as mudanças na coloração da pele observadas nestes casos não aparecem na síndrome de dor desencadeada pelos inibidores de calcineurina. Outros sinais da distrofia são disestesias, instabilidade nervosa autônoma, com alterações vasomotoras e sudoríparas, além de, na maioria das vezes, ser unilateral.11,12 

Para o diagnóstico, além do quadro clínico, são essenciais as imagens de ressonância magnética e de cintilografia.18 Na ressonância, o achado mais característico é o edema de medula óssea. Nosso paciente realizou o exame direcionado ao estudo do joelho esquerdo, local em que os sintomas se iniciaram; não foi estudada a medula óssea femoral. De qualquer forma, os resultados obtidos no exame são compatíveis com a síndrome: efusão intra-articular e edema de partes moles. O cintilograma foi idêntico àqueles descritos na literatura: aumento da captação nas epífises femorais e nos tarsos, bilateral e simetricamente,8,9 o que não deixa qualquer dúvida diagnóstica neste caso.

Há descrição de aumento nos níveis da fosfatase alcalina e do cálcio, antes do aparecimento dos sintomas, na maioria dos pacientes.5,7,19 

FISIOPATOLOGIA 

Há divergências quanto à relação da ciclosporina ou do tacrolimo com a patogênese da síndrome,5 pois sintomas semelhantes foram publicados antes da era dos inibidores de calcineurina, e seu aparecimento estaria relacionado à presença de microfraturas provenientes de microtraumas, as quais ocorrem em ossos fragilizados, que passariam a suportar maior atividade física no período pós-transplante.16,17 Porém, a coincidência do aparecimento da dor com os níveis séricos elevados dos inibidores da calcineurina nos primeiros meses pós-transplante e a ausência da síndrome em pacientes que usam outras drogas imunossupressoras indicam uma relação causal desta condição com o uso dos inibidores da calcineurina.

Os possíveis mecanismos fisiopatológicos envolvidos seriam a vasoconstrição causada pela droga, com isquemia intraóssea, seguida por maior acúmulo de células adiposas no local e edema da medula óssea, concorrendo para o aparecimento de uma síndrome compartimental.15,4 

TRATAMENTO 

Os sintomas são muitas vezes incapacitantes, em razão da dor severa, sem resposta aos mais diferentes tipos de analgésicos. Em todos os relatos da literatura, assim como ocorreu em nosso paciente, a síndrome tem resolução espontânea, e aquelas desaparecem sem qualquer sequela, em um prazo de semanas ou meses.

Embora sem resultados consistentes, há referência de que os inibidores de canal de cálcio interfeririam no edema de medula óssea, melhorando os sintomas, por antagonizar os efeitos vasoconstritores dos inibidores de calcineurina.13 A interrupção ou diminuição da dose do imunossupressor não interfere na melhora do quadro, conforme descrito na maioria dos artigos publicados.1,7,14 Os anti-inflamatórios não hormonais são ineficazes. Descrições recentes do uso de um análogo de prostaciclina com efeito vasodilatador, o iloprost, indicam que este poderia levar, em poucos dias, ao desaparecimento dos sintomas dolorosos.20 Nosso paciente recebeu apenas analgésicos comuns, e, embora por um período a dor tenha se tornado incapacitante, ela desapareceu espontaneamente em 90 dias.

CONCLUSÃO 

Enfatizamos que todo paciente transplantado em uso de inibidor de calcineurina deve ter níveis sanguíneos de fosfatase alcalina monitorados nos primeiros 6 meses pós-transplante, além de, se apresentar dor em joelhos e/ou pés, ser precocemente submetido à ressonância magnética e cintilografia óssea para um diagnóstico correto.

REFERÊNCIAS

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1. Serviço de Nefrologia – Instituto do Rim do Paraná, Santa Casa de Misericórdia de Curitiba.

Correspondência para:
Hélio Vida Cassi
Serviço de Nefrologia/Instituto do Rim do Paraná – Santa Casa de Misericórdia de Curitiba
Rua José Cadilhe, 177
Curitiba – Paraná – CEP: 80620-240
E-mail: vidacassi@terra.com.br

Declaramos a inexistência de conflitos de intereese.

Data de submissão: 17/12/2008
Data de aprovação: 12/05/2009

Síndrome de dor óssea induzida por tacrolimo pós-transplante renal: relato de caso e revisão da literatura

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