J. Bras. Nefrol. 2007;29(1 suppl. 3).

Diretriz

Cerca de 60% do peso de um homem adulto e de 50% do de uma mulher adulta sao constituídos de água (42L em um homem de 70kg). Desse total, 2/3 (28L) situam-se no compartimento intracelular e 1/3 (14L) no extracelular

Por sua vez, o espaço extracelular subdivide-se em um compartimento intersticial, ou extravascular, (11L) e um intravascular (3L), correspondente ao volume plasmático, o qual, somado a 2L de hemácias, constitui o volume sangüíneo, ou volemia (5L)

Sendo as membranas celulares em geral permeáveis à água, esta distribui-se livremente, fazendo com que a osmolaridade seja a mesma em todos esses compartimentos (pouco inferior a 290mOsm/L)

No compartimento intracelular, o principal responsável pela osmolaridade é o potássio, cuja concentraçao intracelular é mantida em valores altos por uma bomba, a Na-K-ATPAse. No extracelular, o cátion dominante é o sódio, que é continuamente bombeado para fora das células por essa mesma Na-K-ATPAse

Há um constante fluxo de água e sódio através do organismo. As entradas de água sao representadas pela ingestao de água como tal (1,2L/dia), ingestao de água com alimentos (1L/dia) e pela prodçao endógena de água (0,3L/dia). Evidentemente esses valores variam de indivíduo para indivíduo.

Já o sódio nao pode ingressar ao organismo a nao ser por ingestao (exceto, é claro, no caso de infusao endovenosa de soluçoes salinas). Como no caso da água, há uma enorme variaçao individual quanto à taxa diária de ingestao de sódio.

Há várias maneiras pelas quais a água e o sódio podem abandonar o organismo. A água é quase sempre eliminada através de secreçoes, normais ou patológicas, que também contêm sódio: as fezes, o suor, a urina e os vômitos. A única exceçao sao as chamadas “perdas insensíveis”, correspondentes à saída de água através dos pulmoes sob forma de vapor. Nao existe eliminaçao de sódio desacompanhado de água

Em condiçoes normais, a quantidade total de água ingerida é idêntica à de água eliminada: o organismo está em balanço de água. O mesmo ocorre em relaçao ao sódio.

A privaçao de água desencadeia o mecanismo da sede através do aumento da pressao osmótica do espaço extracelular e, principalmente, do plasma. A carência de água causa também o estabelecimento de um balanço negativo, que se manifesta principalmente sob a forma de depleçao do volume intracelular. Conforme a intensidade desse balanço negativo, pode haver depleçao apreciável também do volume extracelular, contribuindo para acentuar a sensaçao de sede.

O aumento da pressao osmótica do plasma estimula, de outro lado, a produçao de hormônio antidiurético (ADH), o que reduz a valores mínimos o fluxo urinário. Com isso, o organismo pode minimizar o balanço negativo de água mesmo diante de uma taxa de ingestao relativamente baixa. A síntese de ADH é também fortemente estimulada quando ocorre depleçao do volume plasmático.

Os rins sao também capazes de reter sódio, a ponto de tornar quase indetectável a presença desse íon na urina. Com isso, o organismo pode manter-se em balanço de sódio mesmo em face de taxas de ingestao muito baixas.

Essa propriedade dos rins tem grande valor também em situaçoes em que ocorre perda anômala de sódio (e de água), como nas diarréias. No exemplo acima, o volume de água corpórea manteve-se constante, apesar das perdas consideráveis de sódio e água com as fezes

DESIDRATAÇOES

Do ponto de vista etimológico, o termo “desidrataçao” indica simplesmente perda de água pelo organismo, sem mençao a uma eventual depleçao concomitante de sódio. Do ponto de vista médico, existe uma controvérsia:

Uma parte da comunidade médica internacional, representada principalmente por pediatras, sustenta ser necessário adjetivar a palavra “desidrataçao”, visando enfatizar o mecanismo fisiopatológico subjacente. De acordo com esse critério, quando ocorre perda exclusiva de água pelo organismo, como no diabetes insípido central, deve-se empregar a expressao “desidrataçao hipernatrêmica” ou, alternativamente, “desidrataçao hipertônica”. Por sua vez, a perda proporcional de água e sódio, como ocorre nas diarréias, recebe a designaçao de “desidrataçao isonatrêmica”, ou “desidrataçao isotônica”.

Uma segunda corrente de opiniao entende que o uso do termo “desidrataçao” deve ser reservado às situaçoes em que ocorre perda pura de água pelo organismo. De acordo com essa concepçao, a perda de água e sódio em proporçao semelhante à existente no espaço extracelular deve ser denominada “depleçao de volume”, ou “hipovolemia”, e nao “desidrataçao”, com ou sem adjetivos.

Procuraremos contemplar ambos os pontos de vista (designados “nomenclatura No. 1” e “nomenclatura No. 2”) nos exemplos que se seguem, embora julguemos preferível o emprego do primeiro dos critérios descritos acima (ou seja, a “nomenclatura No.1”).

DESIDRATAÇAO ISOTONICA(NOMENCLATURA No. 1)

DEPLEÇAO DE VOLUME(NOMENCLATURA No. 2)

Nas diarréias graves, podem ocorrer perdas de fluido isotônico em quantidade tal que, mesmo com retençao máxima pelo rim, ocorre balanço negativo de água e sódio. Como a perda é isotônica, a concentraçao de sódio nao se altera, e nao há movimentaçao de água entre os espaços intra e extracelular. A depleçao de água e sódio é confinada ao espaço extracelular, sem alteraçao do volume intracelular. Note que há uma queda considerável do volume plasmático (representada pelo retângulo hachurado em verde), o que certamente traz repercussao hemodinâmica. Note ainda que, embora as perdas tenham sido isotônicas, o indivíduo tem sede, devido exatamente à depleçao do volume plasmático.

A conduta terapêutica nos casos de desidrataçao hipertônica (depleçao de volume extracelular) é óbvia: repor rapidamente as perdas com soluçao fisiológica, até cessarem as manifestaçoes hemodinâmicas da depleçao de fluido.

DESIDRATAÇAO HIPOTONICA (NOMENCLATURA No. 1)

HIPONATREMIA COM DEPLEÇAO DE VOLUME (NOMENCLATURA No. 2)

A desidrataçao hiponatrêmica ou hipotônica (denominada hiponatremia com depleçao de volume de acordo com a Nomenclatura No. 2) ocorre quando as perdas resultantes de sódio sao desproporcionais às perdas resultantes de água. Isso pode ocorrer como uma complicaçao das diarréias graves, uma vez que o paciente padece de sede muito intensa devido à hipovolemia e portanto tende a repor seletivamente a perda de água.

Como o paciente repoe parcialmente as perdas de água, mas nao as de sódio, ocorre diluiçao do meio extracelular, com conseqüente queda de sua pressao osmótica e hiponatremia, com passagem resultante de água para o espaço intracelular. Se as perdas forem muito intensas, o paciente nunca consegue recompor totalmente o volume plasmático e, portanto, nunca satisfaz a sede. A hiponatremia torna-se cada vez mais intensa, o que pode resultar no desenvolvimento de edema cerebral e de sintomas neurológicos graves (observe os valores da osmolaridade e concentraçao de sódio plasmáticas neste exemplo).

As desidrataçoes hipotônicas podem também desenvolver-se como complicaçao de nefropatias perdedoras de sal, ou de abuso de diuréticos. Em ambos os casos, o mecanismo de instalaçao da hiponatremia é semelhante ao descrito anteriormente para as diarréias, com a importante diferença de que neste caso os rins nao retêm sódio e água ativamente – sao na verdade os causadores do distúrbio.

Finalmente, as desidrataçoes hipotônicas podem ser iatrogênicas, ou seja, conseqüentes a açoes médicas inapropriadas. Sao aqueles casos em que o paciente com depleçao isotônica grave recebe apenas infusao de soro glicosado. O efeito é semelhante ao da ingestao de água sem a correspondente ingestao de sódio.

Além dos distúrbios neurológicos, as desidrataçoes hipertônicas podem também causar distúrbios hemodinâmicos importantes, como hipotensao e taquicardia, agravados quando o paciente assume a postura ereta. Esses distúrbios refletem a depleçao do volume plasmático, que nunca é corrigida pela administraçao somente de água por via oral ou parenteral.

Na ausência de sintomas neurológicos, a correçao da desidrataçao hipotônica pode ser feita com soluçao fisiológica. Embora nao seja o ideal para corrigir a hiponatremia, esse procedimento permite recompor o volume plasmático e aliviar os sintomas e sinais hemodinâmicos do distúrbio. Além disso, por conter cloreto de sódio a 154mmol/L, a soluçao fisiológica nao agrava a hiponatremia e até mesmo a atenua.

Se no entanto houver sintomas neurológicos, especialmente quando a duraçao do quadro for inferior a 48h, deve-se procurar atenuar a hiponatremia através da infusao de uma soluçao hipertônica de cloreto de sódio, em geral a 3% (observe que neste exemplo a sede persiste, uma vez que a hipovolemia nao foi corrigida apesar da atenuaçao da hiponatremia)

ATENÇAO: Nao corrigir a concentraçao plasmática de sódio em mais de 10 mEq/L/dia, uma vez que isso pode levar à destruiçao da bainha de mielina em neurônios situados no sistema nervoso central, especialmente na ponte (mielinólise pontina central).

Em geral, a correçao direta da hiponatremia nao está indicada quando a concentraçao plasmática de sódio for superior a 125mmol/L

DESIDRATAÇAO HIPERTONICA (NOMENCLATURA No. 1)

DESIDRATAÇAO (NOMENCLATURA No. 2)

Há situaçoes em que o organismo perde para o meio externo grandes quantidades de água ou fluido hipotônico. Nesses casos, a pressao osmótica do fluido extracelular se eleva, acarretando a transferência de água do meio intracelular para o extracelular e provocando desidrataçao celular (conforme discutido anteriormente, muitos consideram que o termo “desidrataçao” deve ser usado apenas nesses casos). A desidrataçao celular pode ter conseqüências particularmente sérias no sistema nervoso central, uma vez que, além de surgirem sintomas graves como confusao mental e convulsoes, a traçao de estruturas delicadas como as meninges pode provocar hemorragias intracerebrais.

A causa mais intuitiva de desidrataçao hipertônica é a falta de ingestao de água, usualmente devido a alteraçoes no centro da sede (hipodipsia ou adipsia).

A desidrataçao hipertônica também pode se instalar em pacientes com diabetes insipidus que, por alguma razao, deixem de ter pleno acesso à água ou desenvolvam alguma alteraçao no centro da sede, ingerindo assim menos água que o necessário. Conforme a intensidade das perdas renais de água, a desidrataçao que se instala pode ser especialmente grave, levando à instalaçao rápida de sintomas neurológicos.

É evidente que as situaçoes em que ocorre perda pura de água devem ser tratadas com reposiçao de água, usualmente sobre a forma de soro glicosado a 5%. Uma fórmula simples para calcular o volume V de fluido a ser reposto nesses casos é:

V = 0,6 x P x (1-140/PNa),

onde P representa o peso habitual do paciente e PNa representa sua concentraçao plasmática de sódio).

No exemplo acima: sódio plasmático de 158mmol/L, peso habitual de 70kg:

V = 0,6 x 70 x (1-140/158) = 4,6L

DESIDRATAÇOES HIPERTONICAS COMPLEXAS

Na maioria das vezes, a depleçao de água faz-se acompanhar de perda concomitante de sódio, ainda que em menor proporçao. O exemplo mais evidente é o da sudorese excessiva. Nesse caso, ocorre a perda de um fluido francamente hipotônico, já que a concentraçao de sódio no suor é muito mais baixa do que no plasma. No entanto, a concentraçao de sódio no suor se eleva com o aumento da sudorese, embora nunca chegue a se aproximar à do plasma.

Quando a sudorese é excessiva e prolongada, como nos estados febris ou após esforço físico extenuante, a depleçao de fluidos é mais complexa e pode confundir o clínico. Neste exemplo, um atleta amador, após várias horas de competiçao sem reposiçao de líquidos, apresenta-se desidratado e já com sintomas neurológicos. De acordo com a fórmula de correçao de hiponatremia descrita anteriormente, o paciente precisa receber cerca de 5,5L de SG.

Se fizermos isso, corrigiremos o sódio plasmático, mas a depleçao de volume persistirá, devido ao deficit de sódio. Se se guiar apenas pelo distúrbio hemodinâmico, o médico poderá infundir mais SG do que o necessário para corrigir a hipernatremia, podendo assim provocar uma hiponatremia. Esta pode também ser causada pelo próprio paciente, se este ingerir água em grande quantidade durante a atividade física

Outra situaçao em que a depleçao de fluidos assume contornos especialmente complexos é a diabetes mellitus descompensada, especialmente em sua forma hiperosmolar. Nesses casos, ocorre perda urinária maciça de sódio devido à intensa diurese osmótica. Como a urina tende a ser hipotônica, a concentraçao plasmática de sódio tende a subir.

Se o clínico se ativer à correçao da hipernatremia, utilizando a fórmula descrita anteriormente, o sódio plasmático será corrigido, mas a hipovolemia persistirá, certamente com repercussao hemodinâmica grave. Nas desidrataçoes hipertônicas complexas, portanto, a conduta mais segura é a correçao rápida da hipovolemia com administraçao de soro fisiológico, seguida de correçao da hipernatremia, se ainda necessário.

  • O tratamento dos distúrbios hidroeletrolíticos é freqüentemente empírico, baseado na literatura, na opiniao e recomendaçao de especialistas, e depende da resposta do paciente ao tratamento inicial.
  • Os médicos tem que ter conhecimento da homeostase dos eletrólitos e da fisiopatologia de seus distúrbios para tratar corretamente seus pacientes.

Kraft MD,et al Am J Health-Syst Pharm.2005;62:1663-82

http://www.sbn.org.br/dhe/dhe.htm

Diretriz

Comentários