J. Bras. Nefrol. 2009;31(1 suppl. 1):2-5.

Doença Renal Crônica no Brasil: um problema de saúde pública

Jocemir R. Lugon

Chronic Kidney Disease in Brazil: A Public Health Problem

Resumo:

A prevalência de doença renal crônica (DRC) vem aumentando em todo o mundo. No presente artigo, o autor discute a atençao à DRC no Brasil. As informaçoes sobre pacientes em diálise foram extraídas do censo anual da Sociedade Brasileira de Nefrologia, SBN. Os dados sobre transplante renal foram fornecidos pela Associaçao Brasileira de Transplantes de Orgaos, ABTO. O número de enfermos com DRC foi obtido por uma extrapolaçao matemática, baseado em dados gerados por NHANES, um levantamento populacional realizado nos Estados Unidos de América. Em janeiro de 2007, havia 73.605 pacientes em diálise, a maioria deles (~90%) custeada pelo sistema de saúde pública brasileiro. Quando a prevalência é ajustada para a populaçao, resultam 390 pacientes em diálise por milhao de populaçao (pmp). Se agregarmos o número de pacientes com enxerto renal funcionante, extraoficialmente calculado pela ABTO como 27.500 (~150 pmp), a prevalência de doentes renais em terapia renal substitutiva no Brasil em janeiro de 2007 chega a 540 pmp. Os números relativos a pacientes com DRC sao mais imprecisos. Se aplicarmos o 2 percentual de 8,4%, recentemente obtido nos Estados Unidos, o número de pacientes com taxa de filtraçao de glomerular <60mL/min/1.73m2 de superfície de corpo aproxima-se de 15 milhoes de pessoas no Brasil. A prevalência de paciente em terapia renal substitutiva no Brasil em janeiro de 2007 (~540 pmp) permanece baixa, mesmo quando as comparaçoes sao feitas com dados de alguns países vizinhos. Claramente, o tratamento de DRC terminal no Brasil nao parece acompanhar o tamanho da economia do país.

Descritores: Doença renal crônica, terapia renal substitutiva, diálise, transplante, Brasil.

Abstract:

The prevalence of chronic kidney disease (CKD) is increasing worldwide. In the present report, author discusses the care of chronic kidney disease in Brazil. Information as to dialysis treatment was derived from the annual survey by the Brazilian Society of Nephrology. Data about transplantation were raised by the Brazilian Association of Organ Transplantation. Number of chronic kidney disease (CKD) patients was estimated by a mathematical extrapolation based on data generated by NHANES, a comprehensive survey accomplished in the United States of America. On January 2007, there were 73,605 patients on dialysis, the majority of them (~90%) funded by the Brazilian Public Health System. When the prevalence is adjusted for the population, 390 dialysis patients per million of population (pmp) are found. After aggregation of the number of patients with a functioning kidney graft, unofficially estimated by ABTO as 27,500 (~150 pmp), the whole adjusted prevalence of end-stage renal disease patients in Brazil on January 2007 comes close to 540 pmp. Numbers regarding CKD patients are more imprecise. If we apply the percent of 8.4%, recently reported for the United States, the number of patients with glomerular filtration rate <60ml/min/1.73m2 of body surface approximates 15 million people in Brazil. The prevalence of ESRD in Brazil on January 2007 (~540 pmp) remains low even when comparisons are made with data from some Latin American neighbors. Clearly the treatment of ESRD in Brazil does not seem to match the size of the economy of the country.

Descriptors: Chronic kidney disease, ESRD, renal replacement therapy, dialysis, kidney transplantation, Brazil.

 

INTRODUÇAO

O mundo está enfrentando uma epidemia da doença renal crônica (DRC). Bases de dados contendo informaçoes sobre os pacientes no estágio terminal da doença renal (DRCt), especialmente nos Estados Unidos, foram as fontes das primeiras informaçoes a esse respeito1. No presente, autoridades de Saúde Pública de diversos países estao cientes da carga social e econômica que a doença crônica renal representa numa sociedade 2.

Japao e Formosa (Taiwan) sao os países com maior prevalência de DRCt. Em 2003, os números se aproximaram de 1.800 e 1.600 pacientes por milhao de habitantes respectivamente. Tal prevalência é um pouco menor nos Estados Unidos e Espanha, com números correspondentes da ordem de 1.500 e 1.000 pacientes com DRCt por milhao de habitantes 3. Os números em países em desenvolvimento encontram-se abaixo daqueles originados no chamado primeiro mundo, refletindo, talvez, pior qualidade dos sistemas públicos de saúde.

Deve-se mencionar que o número de pacientes com DRCt no mundo está crescendo e que o maior potencial de crescimento encontra-se nos países em desenvolvimento2. Nefropatia Diabética é a causa líder de DRCt em países desenvolvidos e está próxima aos números de hipertensao e glomerulonefrite crônica como maiores causas de DRCt nos países em desenvolvimento 4. Neste artigo, o autor busca discutir a atual situaçao do tratamento da doença renal crônica no Brasil.

O Brasil é um grande país Sul-Americano (área total de 8.511.965 quilômetros quadrados), cuja maior parte territorial encontra-se no Hemisfério Sul. De acordo com o IBGE, existiam 183.888.841 habitantes em abril de 2007 5. No início de 2008, o poder de compra per capita era de US$10.223. O crescimento do produto interno bruto nos últimos três anos foi em torno de 5,5% ao ano.6

Acesso aos cuidados com a saúde é um direito de todo cidadao brasileiro como consta na Constituiçao Brasileira de 1988. A implantaçao de um sistema único e descentralizado de saúde em 1993 foi um marco na viabilizaçao deste direito constitucional. Acesso às diversas áreas da saúde no Brasil, incluindo diálise e transplante renal, deveria, teoricamente, ser universal e gratuito (custeado pelo governo).

Na prática, entretanto, o sistema brasileiro de saúde é um híbrido de público e privado de assistência médica, o que significa que, além do financiamento público, muito do sistema de saúde é custeado por instituiçoes privadas. A maior parte da saúde privada é promovida por empresas com fins lucrativos e cooperativas médicas, sendo uma porçao pequena representada por pessoas físicas independentes. É atualmente estimado que aproximadamente 40 milhoes de pessoas (~20% da populaçao) utilizam algum plano de saúde médico privado no Brasil 7.

Ambas as modalidades de diálise crônica, hemodiálise e diálise peritoneal, sao disponibilizadas pelo sistema de saúde. Os valores do reembolso público para o tratamento dialítico estao na Tabela 1. Deve-se mencionar que a vasta maioria dos pacientes que recebe tratamento crônico de diálise origina-se de atendimentos de emergência em hospitais públicos ou clínicas pré-diálise do sistema público de saúde. A partir daí, estes pacientes sao redirecionados para o centro de diálise mais próximo às suas residências, em muitos casos, após terem iniciado um tratamento dialítico como pacientes internados. Uma pequena fraçao é encaminhada individualmente dos consultórios médicos. Nos últimos anos, um grande investimento foi feito em transplante. De acordo com a Associaçao Brasileira de Transplante de Orgaos (ABTO), nos anos de 2004 e 2005, mais de 3.300 transplantes renais ocorreram anualmente 8 .

A estrutura e o funcionamento dos centros de diálise que lidam com DRCt obedecem às regras da ANVISA (RDC 154, publicado em julho de 2004 e revisado em agosto de 2006). O documento enfatiza a necessidade de aplicar tecnologia moderna no tratamento de pacientes DRCt como previamente proposto pelo Ministério da Saúde em julho de 2000.

A princípio, máquinas de diálise devem empregar banho com tampao bicarbonato, preparado no momento de sua utilizaçao (por máquinas de mistura proporcional), equipadas com um dispositivo de controle de ultrafiltraçao. A qualidade da água tem de ser estritamente controlada. Reprocessar o dialisador é permitido por, no máximo, 12 vezes, exceto em pacientes HIV soropositivos, para os quais se requer descarte imediato após uso único. Dialisadores de pacientes com hepatite C necessitam ser processados separadamente. Pacientes com hepatite B necessitam ser tratados em ambiente separado, isso se aplica também aos seus dialisadores. Para garantir conformidade às normas regulamentares, os centros de diálise sao visitados pela ANVISA ou suas afiliadas ao menos uma vez por ano.

A Associaçao Brasileira de Nefrologia (SBN) começou a coletar dados em relaçao ao tratamento de diálise no Brasil em 1994. Desde entao, em todo mês de janeiro, cada centro de diálise é requisitado a responder um questionário, fornecendo dados em relaçao ao seu serviço de diálise. Tipicamente, perto de 80% dos centros respondem ao questionário. Após a tabulaçao e análise dos dados, uma visao panorâmica do sistema de diálise brasileiro é obtida e entao publicada na página da sociedade na internet (www.sbn.org.br).

No Censo de janeiro de 2007, 621 centros foram contatados e 546 deles responderam ao formulário (88%). Aproximadamente 70% dos centros eram de administraçao privada, 20% eram filantrópicos e 10% públicos. Foi relatado que havia 73.605 pacientes em diálise, sendo a grande maioria (~90%) paga pelo SUS (o número é um tanto quanto surpreendente, considerando que quase 20% da populaçao brasileira possuem plano de saúde privado).

Quando a prevalência é ajustada à populaçao, encontra-se o resultado de 390 pacientes em diálise por milhao da populaçao (pmp). Deve-se ressaltar que o Brasil é um país muito heterogêneo e que a taxa da prevalência foi maior nas áreas mais desenvolvidas, variando de 159 pmp a 493 pmp. Se agregarmos o número de pacientes com um enxerto renal funcionante, extraoficialmente estimado pela ABTO naquela data em 27.500 (~150 pmp), o ajuste total de prevalência em pacientes com DRCt no Brasil, em janeiro de 2007, chega a aproximadamente 540 pmp.

O número ainda indica acesso insuficiente ao tratamento por grande parte da populaçao. Se compararmos a taxa de crescimento anual de pacientes em diálise desde 2000 (Figura 1), pode-se notar que o aumento anual da prevalência em 2006 foi em torno de 8,8%. Em janeiro de 2008, a taxa de crescimento anual foi de 3,9%. Considerando que a possibilidade de a incidência de DRCt no Brasil estar caindo é remota, a queda na taxa anual de crescimento provavelmente reflete a inabilidade do sistema de absorver toda a demanda da populaçao de diálise. Apoiando esta leitura, o aumento do número de centros de diálise no Brasil nos últimos dois anos foi insignificante (de 619 para 621).


Figura 1. Prevalência de pacientes em diálise no Brasil de 2000 a 2007. Mostra-se o número de pacientes (barras pretas) e percentual de variaçao (losangos vazios)

Outra explicaçao para a queda da taxa de crescimento anual poderia ser uma saída acelerada da diálise, mas os dois maiores meios pelos quais pacientes podem sair da diálise, óbito e transplante renal mostraramse relativamente estáveis nos últimos dois anos (de 13%/ano para. 14%/ano e de 3.362/ano para 3.281/ano respectivamente).

Estatísticas a respeito de modalidades de diálise mostram que 91% dos pacientes sao tratados com hemodiálise e 9% com diálise peritoneal. Dos pacientes em diálise, 26% eram diabéticos. Pacientes com idade avançada (> 65 anos) têm maior representatividade dentre pacientes em diálise (26%) em comparaçao com a populaçao brasileira acima de 60 anos (10%) 9, reforçando a concepçao de que idade avançada é um fator de risco para a doença crônica renal.

Um total de 32.650 pacientes em diálise (44%) estava em lista de espera de transplante renal. Em janeiro de 2007, o percentual de pacientes testados para a presença de HBsAg foi de 1,6% e para anticorpos contra vírus hepatite C (HCV), 9,1%. Esses valores sao significantemente inferiores aos obtidos em 2000, quando 3,9% dos pacientes encontravam-se positivos para HBsAg, e 19,9% anti-HCV positivos. O percentual de pacientes HIVpositivos em janeiro de 2007 era de 0,7%.

Considerando que a DRC é normalmente uma doença progressiva, é adequado atentar para os pacientes que representam a fonte dos portadores de DRCt, ou seja, os renais crônicos na fase pré-diálise. Infelizmente, nao existem estudos que forneçam números precisos para a doença crônica renal pré-diálise no Brasil. O único estudo com base populacional, em uma pequena cidade do interior do sudeste brasileiro, avaliou 818 adultos (18-59 anos) e 1.742 idosos (>60 anos), empregando como critério diagnóstico creatinina sérica >1,3mg% para ambos os sexos 10. A taxa de prevalência de doença renal crônica com creatinina sérica >1,3mg% foi de 0,5% nos adultos e 5% nos idosos.

Infelizmente, esse estudo traz pouca informaçao acerca da real prevalência de DRC no Brasil, já que o critério empregado é muito estrito. Além disso, é pouco provável que a populaçao analisada seja representativa da populaçao brasileira como um todo. Entretanto, se extrapolarmos o percentual de 8,4%, recentemente publicado nos Estados Unidos 11, o número de pacientes com taxa de filtraçao glomerular <60mL/min/1,73m2 de superfície corporal 12 no Brasil seria aproximadamente 15 milhoes. Infelizmente, a maioria destes pacientes nao é diagnosticada e, portanto, nao é tratada.

O sistema brasileiro de saúde começou a dar atençao à prevençao e ao diagnóstico precoce na doença crônica renal, mas as iniciativas públicas neste meio ainda sao incipientes. Deve-se ressaltar a iniciativa recente de incluir a doença renal como um tema dos cadernos de atençao básica do Ministério da Saúde.

Em resumo, o tratamento para DRCt no Brasil é predominantemente financiado pelo governo e o acesso às opçoes de tratamento é universal. Apesar de uma aceitável taxa de mortalidade em diálise (14%) e os recentes esforços para aumentar a taxa de transplantes renais, há ainda muito a avançar. A prevalência em DRCt no Brasil em janeiro de 2007 (~540 pmp) mantém-se baixa até mesmo quando comparada a dados de outros países da América Latina, coletados há três anos. No Chile e no Uruguai, por exemplo, a prevalência de DRCt em 2004 foi de 750 pmp e 800 pmp respectivamente 3.

Claramente, o tratamento de DRCt no Brasil nao acompanha o tamanho do país e de sua economia. Tal realidade nao é surpreendente, considerando que fonte do Ministério da Saúde afirma que o gasto público com Saúde em 2004 foi de apenas 3,7% do GDP e aproximadamente US$304,00 per capita/ano 13.`

REFERENCIAS

1. Port FK. The end-stage renal disease program: trends over the past 18 years. Am J Kidney Dis 20 (Suppl1):3-7,1992

2. Hamer RA, El Nahas AM. The burden of chronic kidney disease is rising rapidly worldwide. BMJ 332:563-4,2006

3. US Renal Data System: Excerpts from the USRDS 2005 Annual Data Report: International comparisons. Am J Kidney Dis 47(Suppl1):S215-26,2006

4. US Renal Data System: Excerpts from the USRDS 2005 Annual Data Report: Patient characteristics. Am J Kidney Dis 47(Suppl1):s81-94,2006

5. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem2007/default.shtm, visited th on July 29th, 2008

6. http://www.indexmundi.com/brazil/gdp_per_capita_(ppp).html, visited on July 28th, 2008

7. http://www.ans.gov.br/portal/upload/ informacoesss/folder_ANS-Info_2008.pdf, th visited on July 28th, 2008

8. http://www.abto.org.br/profissionais/profissionais.asp, visited on July 26th, 2008

9. http://www.ibge.com.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=987&id_pagina=1, visited on July 22, 2008

10. Passos VMA, Barreto SM, Lima-Costa MFF, and the Bambuí Health and Ageing Study (BHAS) Group3. Detection of renal dysfunction based on serum creatinine levels in a Brazilian community. The Bambuí Health and Ageing Study. Braz J Med Biol Res 36:393-401,2003

11. US Renal Data System: Excerpts from the USRDS 2007 Annual Data Report: Chronic Kidney Disease. Am J Kidney Dis 52(Suppl1):S63-80,2008

12. Coresh J, Astor BC, Greene T, Eknoyan G, Levey AS. revalence of chronic kidney disease and decreased kidney function in the adult US population: third national health and nutrition examination survey. Am J Kidney Dis 41:1-12,2003

13. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?idb2006/e0601.def, visited on July 22, 2008

Sociedade Brasileira de Nefrologia e Divisao de Nefrologia, Departamento de Medicina, Universidade Federal Fluminense.

Doença Renal Crônica no Brasil: um problema de saúde pública

Comentários