J. Bras. Nefrol. 2002;24(1 suppl. 1):5-10.

Atividade imunossupressora de preparações de ciclosporina A em células mononucleares

Beni Olej, Jocemir R Lugon, Flavio Eduardo P da Silva, Michele C Meletti-Oliveira, Vivian M Rumjanek

Immunossupressive activity of cyclosporine A formulations in mononuclear cells

 

Resumo:

Objetivo: Comparar a atividade imunossupressora in vitro de duas preparaçoes comerciais de ciclosporina A (Sigmasporin Microoral®, da Sigmapharma, e Sandimmun Neoral®, da Novartis) em células mononucleares de voluntários sadios e pacientes renais crônicos. Métodos: Os dois medicamentos, em suas embalagens comerciais, foram solicitados a uma farmácia hospitalar, transferidos para frascos idênticos e rotulados como ciclosporina 1 (CsA1) e 2 (CsA2) por pesquisador independente. Foi estabelecida uma curva de concentraçao das duas preparaçoes, e avaliada sua capacidade de inibiçao da proliferaçao de células mononucleares induzida por fito-hemaglutinina (PHA) em culturas de células mononucleares do sangue periférico e em sangue total obtidas a partir de voluntários sadios (n=12) e, também, em sangue total de pacientes hemodialisados (n=11). Resultados: O estudo demonstrou que as duas preparaçoes comerciais sao imunossupressoras com curvas semelhantes, embora estatisticamente diferentes no que se refere à inibiçao da proliferaçao de células mononucleares induzida por PHA em linfócitos do sangue periférico e em sangue total de voluntários sadios e sem diferença estatisticamente significativa em sangue total de pacientes hemodialisados nas concentraçoes testadas. Conclusao: As duas preparaçoes comerciais de ciclosporina (Sigmasporin Microoral®, da Sigmapharma, e Sandimmun Neoral®, da Novartis) apresentam atividade imunossupressora equivalente in vitro.

Descritores: Ciclosporina A. Proliferaçao de células mononucleares. Hemodiálise.

Abstract:

Objective: To compare in vitro the immunosuppressive activity of two commercial formulations of cyclosporine A (Sigmasporin Microoral®, Sigmapharma, and Sandimmun Neoral®, Novartis) in mononuclear cells of healthy volunteers and chronic renal patients. Methods: Both formulations – in their commercial packages – were requested from a hospital pharmacy, then transferred to identical vials and identified by an independent researcher as cyclosporine 1 (CsA1) and 2 (CsA2). It was established a curve of doses for both preparations. Their inhibitory capacity on PHA-induced mononuclear cell proliferation was measured in peripheral blood lymphocytes and whole blood of healthy volunteers (n=12) and whole blood of hemodialysis patients (n=11). Results: At the concentrations tested, both commercial formulations showed immunosuppressive activity with similar though statistically different PHA-induced mononuclear cell proliferation curves in peripheral blood lymphocytes and whole blood of healthy volunteers, and with no statistical difference in whole blood of hemodialysis patients. Conclusion: Both commercial formulations of cyclosporine A (Sigmasporin Microoral®, Sigmapharma, and Sandimmun Neoral®, Novartis) show equivalent in vitro immunosuppressive activity.

Descriptors: Cyclosporine A. Mononuclear cell proliferation. Hemodialysis.

 

INTRODUÇAO

A utilizaçao de medicamentos genéricos tem o potencial de reduzir expressivamente os gastos com medicamentos no período pós-transplante.1,2 O esforço para o desenvolvimento de genéricos tem sido encorajado pelas agências reguladoras em nível internacional. A metodologia e as exigências para o registro de medicamentos genéricos sao rigorosas, envolvendo estudos controlados de bioequivalência e biodisponibilidade, cujo objetivo final é determinar se o medicamento que está sendo proposto, em relaçao ao padrao de referência de uma medicaçao já existente, é absorvido e atinge níveis séricos de maneira semelhante. No entanto, nao sao exigidos testes de atividade biológica da substância. Na prática, parte-se do pressuposto de que as novas formulaçoes, uma vez absorvidas e tendo atingido concentraçoes séricas adequadas, apresentam a mesma atividade biológica originalmente descrita como terapêutica. Particularmente no caso da ciclosporina, sua atividade biológica como agente imunossupressor é vital para o êxito dos transplantes. O objetivo deste estudo foi avaliar e comparar a atividade biológica imunossupressora de duas preparaçoes de ciclosporina em microemulsao existentes no mercado brasileiro (Sigmasporin Microral ® e Sandimun Neoral®), no sentido de oferecer mais subsídios no processo de tomada de decisoes para a comunidade transplantadora.

MÉTODOS

Drogas e reagentes

Sigmasporin Microoral® (SigmaPharma, Brasil) e Sandimun Neora (Novartis, Suíça) foram obtidas por solicitaçao à farmácia do Hospital Universitário Antonio Pedro, Niterói, RJ, em soluçao oral com 100 mg/ ml. Ambas as preparaçoes foram diluídas em meio de cultura RPMI-1640 (Sigma, St. Louis, EUA), acondicionadas em frascos estéreis, idênticos, de cor âmbar e ao abrigo da luz e identificadas aleatoriamente como ciclosporina 1 e ciclosporina 2 por um investigador independente, que forneceu o código de identificaçao apenas ao final dos resultados. Nas culturas celulares, foram também utilizados os seguintes reagentes: RPMI- 1640 (Sigma, St. Louis, EUA), soro fetal bovino (Fazenda Pigue, Brasil) e PHA (Sigma, St. Louis, EUA).

Preparaçoes celulares

Sangue venoso heparinizado de voluntários sadios e de pacientes hemodialisados foi colhido e processado para a obtençao de duas preparaçoes celulares. Para a preparaçao de sangue total, o mesmo foi diluído em RPMI-1640 (1:5) e, para a preparaçao de células mononucleares de sangue periférico, o sangue foi fracionado por centrifugaçao em gradiente de densidade por Ficoll-Hypaque (Sigma, St. Louis, EUA). A fraçao mononuclear obtida foi lavada duas vezes e suspensa em RPMI com 5% de soro fetal bovino, com o número de células ajustado para 1 x 106 células/ml.

Ensaio de proliferaçao

As medidas da proliferaçao de células mononucleares foram realizadas pela determinaçao da incorporaçao de 3H-timidina ao DNA celular. Ambas as preparaçoes foram transferidas para placas de microcultura de 96 poços, às quais foi adicionada fito-hemaglutinina (PHA) a 5 µ.g/ml na presença ou ausência de uma curva de concentraçoes de ciclosporina 1 e 2 (20 ng/ml a 200 µg/ml) recém-diluídas, e incubadas a 37ºC em atmosfera estéril, com 5% de CO2, por 72 horas (linfócitos periféricos) ou 120 horas (sangue total). Seis horas antes do final do período de incubaçao, as culturas celulares foram pulsadas com 0,5 µCi de 3H-timidina, e, ao fim desse período, as células foram colhidas, e a radioatividade determinada em contador de cintilaçao líquida.

As diversas etapas do processamento das amostras estao resumidas na Figura 1.


Figura 1 – Ensaio de proliferaçao de células mononucleares induzida por fito-hemaglutinina (PHA) em sangue total (à esquerda) e em células mononucleares do sangue periférico (à direita).

Análise estatística

Os resultados sao mostrados como média (figuras) ou média e desvio-padrao (texto). Os resultados dos grupos de cada uma das três situaçoes experimentais (células isoladas de voluntários, sangue total de voluntários e sangue total de hemodialisados) foram tratados estatisticamente de modo independente e avaliados por one-way Anova, pelo emprego do programa Epistat. O nível de significância estabelecido foi p<0,05.

Resultados

As características dos grupos estudados (voluntários sadios e hemodialisados) estao resumidas na Tabela.

Voluntários sadios

A Figura 2 mostra os resultados obtidos com ambas as preparaçoes de ciclosporina, comparando as respectivas capacidades de inibira proliferaçao de células mononucleares induzida por PHA. Os valores observados refletem a média da inibiçao da proliferaçao do conjunto dos voluntários testados (n=12). Nessa preparaçao, obtida a partir de células mononucleares periféricas, constata-se que a curva é semelhante em ambas as formulaçoes de ciclosporina. Apesar de ser estaticamente significante, a modesta diferença foi observada somente na concentraçao de 20 ng/ml, em que a inibiçao da proliferaçao pela CsA1 (23,6%±2,4%) foi superior à da CsA2 (20,2%±1,1%), p<0,01.


Figura 2 – Percentual de inibiçao da proliferaçao de células mononucleares induzida por PHA no sangue periférico de controles saudáveis: CsA 1 (barras vazias) e CsA 2 (barras cheias). *p<0,05 vs. CsA1

Diferentemente, o efeito inibitório obtido em culturas de sangue total (Figura 3) das duas preparaçoes foi estatisticamente diferente nas concentraçoes de 200 ng/ml e 2 ug/ml, neste caso em favor da CsA2 (50, 5% ± 2, 2% vs. 56,5%±3,6% e 70,3%±1,9% vs. 74,4%±2,9% para as concentraçoes de 200 ng/ml e 2 µ,g/ml, respectivamente; p<0,001 em ambas situaçoes).


Figura 3 – Percentual de inibiçao da proliferaçao de células mononucleares induzida por PHA em sangue total de controles saudáveis: CsA1 (barras vazias) e CsA2 (barras cheias). *p<0,05 vs. CsA1

Pacientes hemodialisados

Esse grupo foi constituído por 13 pacientes adultos com insuficiência renal crônica e sob tratamento hemodialítico, e o sangue foi colhido imediatamente antes do procedimento de diálise. Somente 11 amostras foram aproveitadas para análise, uma vez que as amostras de dois pacientes nao apresentaram resposta proliferativa. Os resultados encontrados, restritos ao ensaio de proliferaçao com sangue-total, encontramse na Figura 4. Nesse grupo, os resultados, obtidos com as duas preparaçoes de ciclosporina, nao apresentaram diferenças estatisticamente significativas.


Figura 4 – Percentual de inibiçao da proliferaçao de células mononucleares induzida por PHA em sangue total de hemodialisados: CsA1 (barras vazias) e CsA2 (barras cheias).

Abertura do protocolo cego

A abertura do código de identificaçao das preparaçoes de ciclosporina 1 e 2, realizada por investigador independente, revelou que a preparaçao identificada por CsA 1 corresponde a Sandimmun Neoral®, lote 245MFD0198, fabricado em janeiro de 1998 e com validade até janeiro de 2001, e aquela identificada como CsA 2 corresponde a Sigmasporin Microoral®, lote 995748, fabricado em novembro de 1999 e com validade até novembro de 2001.

Discussao

No presente estudo, o modelo utilizado foi o da investigaçao da capacidade de inibiçao das formulaçoes testadas sobre a proliferaçao de células mononucleares induzida por fito-hemaglutinina (PHA). Esse é um ensaio clássico de proliferaçao de células mononucleares, amplamente utilizado para a triagem de drogas com potencial imunossupressor,3 e que serviu de modelo para a descriçao original da ciclosporina por Borel.4 A fito-hemaglutinina é um agente mitogênico para linfócitos humanos que age fundamentalmente sobre os linfócitos T.5,6 Foram utilizados dois tipos de preparaçoes celulares: uma de células mononucleares periféricas e uma de sangue total. A preparaçao de sangue total, validada na literatura internacional7 e adaptada no laboratório onde foi realizado o presente estudo,8 representa um modelo biológico interessante, uma vez que a presença de outras células sangüíneas durante o processo de cultura reflete de modo mais fidedigno a situaçao encontrada in vivo. Essas duas preparaçoes foram entao submetidas à cultura, com ou sem estímulo por PHA e na presença ou na ausência de uma curva de doses crescentes das duas preparaçoes de ciclosporina. A realizaçao dos ensaios desenvolveu-se como um estudo cego, uma vez que a identificaçao das preparaçoes de ciclosporina 1 e 2 era desconhecida do investigador. Ressalte-se que os medicamentos testados foram solicitados à farmácia do Hospital Universitário, sem qualquer interferência das indústrias fabricantes.

A diferença estatística observada nos ensaios entre as duas preparaçoes comerciais em voluntários sadios utilizando preparaçoes purificadas de células mononucleares restringiu-se a uma única concentraçao de ciclosporina (20 ng/ml). A análise dos resultados com a técnica mais simples e barata que emprega sangue total também revelou inibiçao progressiva da proliferaçao por concentraçoes crescentes de ciclosporina, tendo sido observadas diferenças entre as duas formulaçoes comerciais (nas concentraçoes de 200 ng/ml e 2 µg/ml). Considerando esses resultados, optou-se por realizar apenas os ensaios de proliferaçao em sangue total quando do processamento das amostras dos hemodialisados. Essa estratégia teria, também, a vantagem de permitir avaliar a açao das ciclosporinas na presença de fatores plasmáticos potencialmente capazes de interferir com a resposta imune,9,10 refletindo, com maior fidedignidade, a situaçao biológica encontrada in vivo. Nao foi observada qualquer diferença entre o poder inibitório das duas formulaçoes comerciais nas diversas concentraçoes testadas. Nos hemodialisados, no entanto, pareceu haver maior sensibilidade das células mononucleares à açao antiproliferativa da ciclosporina, refletida numa inclinaçao bem mais acentuada da curva inibitória, quando comparada àquela obtida nos voluntários sadios. Essa maior sensibilidade pode ter decorrido da açao inibitória de toxinas urêmicas, presentes no ensaio em sangue total. Essa possibilidade está sendo atualmente investigada no laboratório onde foi realizado este estudo.

Conclusao

Ambas as preparaçoes demonstraram atividade imunossupressora in vitro, com efeito inibitório sobre a proliferaçao de células mononucleares, tanto no sangue periférico quanto em sangue total, em concentraçoes concordantes com literatura.11-13 Foi constatada uma discreta diferença entre as duas formulaçoes comerciais estudadas, denotando uma tendência a um melhor desempenho da preparaçao identificada como ciclosporina 2 apenas na preparaçao de sangue total de voluntários sadios e a favor da ciclosporina 1 na preparaçao de células mononucleares isoladas de voluntários sadios.

REFERENCIAS

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11. Flanagan WM, Corthesy B, Bram RJ, Crabtree GR. Nuclear association of a t-cell transcription factor blocked by FK506 and cyclosporine A. Nature 1991;352:803-7.

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13. Sigal NH, Dumont FJ. Cyclosporine A, FK506 and rapamycin: pharmacologic probes of lymphocyte signal transduction. Ann Rev Immunol 1992;10:519-60.

1. Laboratório de Imunologia Tumoral do Departamento de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2. Departamento de Medicina Clínica da Universidade Federal Fluminense (UFF). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Endereço para correspondência:
Beni Olej
Depto. de Medicina Clínica do Hospital Universitário Antônio Pedro
Rua Marquês de Paraná, 303, Centro
24030-000 Niterói, RJ, Brasil
Tel.: (0xx21) 9619-7279/2644-6447
E-mail: olej@terenet.com.br

Recebido em 26/7/2001.
Aceito em 24/1/2002.
Fonte de financiamento e conflito de interesses inexistentes.

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