J. Bras. Nefrol. 2006;28(2 suppl. 1):18-21.

Anemia e progressão da doença renal crônica

Marcus G. Bastos

Anemia and progression of chronic kidney disease

 

Resumo:

A anemia da doença renal crônica decorre, principalmente, da produçao diminuída da eritropoietina e a sua prevalência aumenta com a diminuiçao da filtraçao glomerular. A anemia determina várias manifestaçoes clinicas relevantes e o seu tratamento deveria ser incorporado no manejo geral da doença renal crônica. Os agentes estimuladores da eritropoiese sao seguros e deveriam ser utilizados, posto que o tratamento da anemia pode evitar algumas das lesoes de órgaos alvos e, possivelmente, retardar a progressao da doença renal.

Descritores: Anemia. Doença renal crônica. Eritropoetina. Filtraçao glomerular.

Abstract:

Anemia of chronic kidney disease is mainly due to diminished production of erythropoietin by the kidney, and its prevalence increases as the glomerular filtration rate falls. Anemia determines several relevant clinical manifestations and, therefore, its treatment should be incorporated as part of management of chronic kidney disease. Erythropoiesis-stimulating agents are safe and should be used in the treatment of anemia in order to avoid the target-organ damage seen in the disease, and, possibly, to delay progression of the chronic kidney disease.

Descriptors: Anemia. Chronic kidney disease. Erithropoetin. Glomerular filtration rate.

 

INTRODUÇAO

A doença renal crônica (DRC) progressiva está sendo considerada uns dos maiores problemas de saúde pública da atualidade. Dados obtidos de levantamentos populacionais permitem estimar que 11% e 16% da populaçao dos Estados Unidos da América e da Austrália, respectivamente, apresentam pelo menos um indicador de lesao renal1,2. A prevalência de pacientes com DRC estágio 5 em terapia renal substitutiva (TRS) varia de 438,2 por milhao na Islândia a 1.080,9 por milhao na regiao de Valência, na Espanha3. No Brasil, o aumento do número de pacientes incidentes em TRS é assustador: a média nacional é de 6-7% e, em Juiz de Fora, de janeiro de 2005 a janeiro de 2006, foi de 14%4. Em levantamento recente que realizamos em usuários da UNIMED de Juiz de Fora5, observamos que 21,5% apresentavam filtraçao glomerular (FG) <60mL/min/1,73m2, percentual semelhante aos 17,4% relatados por Go et al. no Kaiser Permanente, na Califórnia, Estados Unidos6. A DRC, especialmente nos estágios 3, 4 e 5, se associa com anemia, risco aumentado de diminuiçao da qualidade de vida, doença cardiovascular e morte.

O quadro 1 sumariza as recomendaçoes do Kidney Disease Outcomes Quality Initiative (K/DOQI) da National Kidney Foundation americana7 e da Sociedade Brasileira de Nefrologia8 sobre cuidados ótimos da DRC. Como pode ser visto, o tratamento da anemia aparece como uma das recomendaçoes, posto que se associa com melhora da qualidade de vida, da atividade cognitiva, da capacidade para executar exercícios, da funçao sexual, com diminuiçao das morbimortalidades cardiovasculares e das internaçoes hospitalares. O efeito da correçao da anemia na velocidade de progressao da DRC em seres humanos é, contudo, ainda matéria de controvérsia. A ocorrência de anemia aumenta o risco de progressao para TRS, e a hemoglobina é considerada fator de risco independente de queda da FG em pacientes com DRC diabética e nao diabética9,10.

Apesar da disponibilidade da eritropoetina humana recombinante (EPO), desde o início da década passada, a prevalência de anemia severa ainda é alta quando do início da TRS. Em estudo recente, com análise de um grande número de prontuários de pacientes com DRC na fase pré-dialítica, observou-se que 45% dos pacientes com DRC e disfunçao renal leve (creatinina sérica <2mg/dl) apresentavam valores de hematócrito (Htc) <36%, sendo que, em 8% dos pacientes, o Htc foi <30%.11 Contudo, quando do início da TRS, a taxa de anemia foi ainda maior: 68% dos pacientes apresentavam Htc <30% e, em 51%, o Htc observado foi <28%12.

Causa da anemia na DRC

A principal causa de anemia na DRC é a produçao inadequada de eritropoetina endógena pelas células intersticiais próximas à base dos túbulos proximais dos rins13. Na DRC, a produçao inadequada de eritropoetina resulta numa anemia do tipo normocítica e normocrômica. Contudo, é importante observar que a anemia da DRC também pode ser causada, ou agravada, por outros fatores: 1. A deficiência absoluta ou funcional de ferro favorece a ocorrência da anemia hipocrômica, microcítica; 2. Diminuiçao do tempo de vida das hemácias e hemólise; 3. Inibiçao da eritropoiese por “toxinas” urêmicas; 4. Fibrose da medula óssea e osteíte cística secundárias ao hiperparatireoidismo; 5. Perdas sangüíneas ocultas pelo trato gastrintestinal ou urinário; 6. Outras deficiências nutricionais, tais como vitamina B12 e folato; e 7. Outras causas incluem a toxicidade óssea por alumínio e a concomitância de neoplasia e hipotireoidismo14.

Anemia e progressao da DRC

Como mencionado anteriormente, estudos realizados em pacientes com DRC secundária ao diabetes tipo 2, bem como a outras nefropatias, indicam que a correçao da anemia associa-se com a reduçao na velocidade de perda da filtraçao glomerular. Iseki et al.15 acompanharam 71.000 participantes de um programa de rastreamento populacional por 17 anos e observaram que o hematócrito basal se associou com o risco subseqüente de ocorrência de DRC dialítica. Keane et al.16 examinaram 23 fatores de risco potenciais para perda progressiva da FG entre pacientes diabéticos que participaram do estudo RENNAL e observaram que somente quatro, proteinúria, creatinina sérica, hipoalbuminemia sérica e o nível de hemoglobina, se associaram, independentemente, com risco de dobrar a creatinina sérica ou progressao para DRC dialítica.

Existem poucos estudos de intervençao que avaliam o impacto da correçao de da anemia na velocidade de progressao DRC. Kuriyama et al.17 mostraram que a correçao da anemia com eritropoetina humana recombinante (EPO) diminuiu a velocidade de queda da FG em 73 pacientes com DRC pré-dialítica que apresentavam, no início do estudo, creatinina sérica entre 2 e 4mg/dL e hematócrito <30%. Tapolyai et al.18 estudaram 18 pacientes com DRC com creatinina sérica média basal de 5,0mg/dL e observaram que a inclinaçao média da alteraçao mensal da recíproca da creatinina foi significativamente menor: -0,014dL/mg/m para -0,0017dL/mg/m após correçao do hematócrito de 26,9% para 33,1%. Teplan et al.19, em estudo randomizado prospectivo em 186 pacientes com DRC e FG entre 22-36mL/min, observaram que a administraçao de EPO, ceto-ácidos e dieta hipoprotéica se associou com menor velocidade de progressao da doença e menores níveis de proteinúria. Como o estudo foi desenhado para utilizar três protocolos terapêuticos, os autores foram capazes de isolar o efeito independente da EPO em diminuir a perda funcional renal.

O impacto salutar da correçao da anemia na progressao da DRC foi demonstrado recentemente. Gouva et al.10 estudaram prospectivamente 88 pacientes com DRC pré-dialítica com creatinina sérica entre 2-6mg/dL e hemoglobina entre 9-11,6g/dL. Os pacientes foram acompanhados por 22,5 meses e foram distribuídos, randomicamente, em dois grupos: pacientes com correçao imediata da anemia e pacientes em que a correçao da anemia foi postergada. No caso dos pacientes que receberam tratamento imediato com EPO (50U/kg/semana), o objetivo foi alcançar níveis de hemoglobina >13g/dL, enquanto que, com relaçao aos pacientes do grupo de tratamento postergado, a correçao da anemia com EPO só ocorreu quando a hemoglobina diminuía a níveis <9,0g/dL. Os autores observaram que o desfecho primário, composto de dobrar a creatinina, necessidade de TRS e óbito, foi significativamente menor (29%) nos pacientes com correçao imediata da anemia do que naqueles em que se postergou a correçao da anemia (53%). Embora seja animador, o estudo apresenta uma grande limitaçao, que foi a exclusao dos pacientes em uso de medicamentos com açao no eixo renina-angiotensina-aldosterona, e, assim, deixa sem resposta o quanto poder-se-ia retardar a progressao da DRC se os pacientes do grupo em que a correçao da anemia foi postergado, fossem otimamente tratados.

O mecanismo do efeito benéfico da correçao da anemia na progressao da DRC ainda nao está esclarecido (figura 1). Especula-se que a anemia pode acelerar a perda funcional renal via a geraçao de citocinas, tais como o fator indutor de hipóxia-1, e, assim, agravar a lesao renal20. Adicionalmente, a hipóxia induzida pela anemia pode estimular a atividade simpática, determinando reduçao do fluxo sangüíneo renal e da FG21. Estudos em animais evidenciam que o tratamento com EPO se associa com melhora da hipóxia renal através do aumento da sobrevida das células da microcirculaçao renal associada ou nao ao desenvolvimento de neovascularizaçao22.


Figura 1. Mecanismos possíveis de progressao da DRC secundários a anemia

Contudo, é importante mencionar que uma meta-análise recente das evidências disponíveis nao demonstrou benefício conclusivo do tratamento com eritropoetina na progressao da DRC ou no retardo do início do tratamento dialítico23.

CONCLUSAO

Embora os estudos disponíveis evidenciem que a correçao da anemia secundária à DRC se associa com melhora da qualidade de vida, aumento da capacidade para a prática de exercícios e diminuiçao da necessidade de transfusoes sangüíneas, é importante ressaltar que, até momento, a hipótese de que a correçao da anemia determina diminuiçao da velocidade de queda da FG baseia-se principalmente em estudos de intervençao com pequeno número de pacientes, tornando clara a necessidade de ensaios clínicos prospectivos, randomizados, duplo-cegos que comprovem o benefício da correçao da anemia com EPO na progressao da doença.

REFERENCIAS

1. Coresh J, Astor BC, Greene T, Eknoyan G, Levey AS. Prevalence of chronic kidney disease and decreased kidney function in the adult US population: Third National Health and Nutrition Examination Survey. Am J Kidney Dis 2003;41:1-12.

2. Chadban SJ, Briganti EM, Kerr PG, et al. Prevalence of kidney damage in Australian adults: The AusDiab kidney study. J Am Soc Nephrol 2003;14(suppl 2):S131-S138.

3. ERA-EDTA Registry 2002 Annual Report. Amsterdam, The Netherlands, Academic Medical Center, May 2004. Disponível em http://www.era-edta-reg.prg/files/annualreports/pdf/AnnRep2002.pdf

4. Guercio, SM. Comunicaçao pessoal.

5. Batista LKC, Pinheiro HS, Fuchs RC, Oliveira T, Belchior FJE, Calil ACS, et al. Manuseio da doença renal crônica em pacientes com hipertensao e diabetes. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.) 2005;27:8-14.

6. Go As, Chertow GM, Fan D, Chronic kidney disease and its risks of death, cardiovascular events, and hospitalization. N Engl J Med 2004;351:1296-305.

7. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification and stratification. Am J Kidney Dis 2002;39(Suppl 2):S1-S246

8. Diretrizes Brasileiras de doença renal crônica. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.) 2004;26(supl 1):1-49.

9. Mohanram A, Zhang Z, Shahinfar S, Keane W, Brenner BM, Toto RD. Anemia and end-stage renal disease in patients with type 2 diabetes and nephropathy. Kidney Int 2004;66:1131-8.

10. Gouva C, Nikolopoulos P, Loannidis JP, Siamopoulos KC. Treating anemia early in renal failure slows the decline of renal function: a randomized controlled trial. Kidney Int 2004;66:753-60.

11. Kasmi WH, Kausz At, Khan S, Abichandani R, Ruthazer R, Obrador GT, Pereira BJG. Anemia: An early complication of chronic renal insufficiency. Am J Kidney Dis 2001;38:803-12.

12. Obrador CT, Ruthazer R, Arora P, Kausz AT, Pereira BJ. Prevalence of and factors associated with suboptimal care before initiation of dialysis in the United States. J Am Soc Nephrol 1999;10:1793-800.

13. Nurko S. Anemia in chronic kidney disease: Causes, diagnosis, treatment. Cleveland Clin J Med 2006;73:289-97.

14. Besarab A, Levin A. Defining a renal anemia management period. Am J Kidney Dis 2000;36(Suppl 3):S13-S23.

15. Iseki K, Ikemira Y, Iseki C, Takishita S. Haematocrit and the risk of developing end-stage renal disease. Nephrol Dial Transplant 2003;12:139-43.

16. Keane WF, Brenner BM, de Zeeuw D, et al. RENAAL study investigators. The risk of developing end-stage renal disease in patients with type 2 diabetes and nephropathy: the RENAAL study. Kidney Int 2003;63:1499-507.

17. Kuriyama S, Tomonari H, Yoshida H, Hashimoto T, Kawaguchi Y, Sakai O. Reversal of anemia by erythropoetin therapy retards the progression of chronic renal failure, especially in nondiabetic patients. Nephron 1997;77:176-85 .

18. Tapolyai M, Kadomatsu S, Perera-Chong M. r-Huerythopoetin (EPO) tratment of pré-ESRD patients slows the rate of progression of renal decline. BMC Nephrol 2003;4:3.

19. Teplan V, Schuck O, Knotek A, Hajnv J, Horackova M, Kvapil M, Czech multicenter study. Enhanced metabolic effect of erythropoietin and keto acids in CRF patients on low-protein diet: Czech multicenter study. Am J Kidney Disease 2003;41(suppl 1):S26-S30.

20. Rosenberger C, Mandriota S, Jurgensen JS, Wiesener MS, Hörstrup JH, Frei U, et al. Expression of hypoxia-inducible factor-1 alpha and 2-alpha in hypoxic and ischemic rat kidney. J Am Soc Nephrol 2002;13:1721-32.

21. Denton KM, Shweta A, Anderson WP. Preglomerular and postglomerular resistance response to different levels of sympathetic activation by hypoxia. J Am Soc Nephrol 2002;13:27-34.

22. Kang DH, Park EY, Yu ES, Lee YS, Yoon KI. Renoprotective effect of erythropoietin (EPO): possibly via an amelioration of renal hypoxia with stimulation of angiogenesis in the kidney. Kidney Int 2005;67:1683.

23. Cody J, Daly C, Campbell M et al. Rocombinat human erythropoetin for chronic renal failure anaemia in pré-dialysis patients. Cochrane Database Sust Rev 2005;3:CD3266

Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora; Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Nefrologia da UFJF e Fundaçao IMEPEN. Departamento de Clínica Médica e Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Nefrologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora e Fundaçao IMEPEN.

Endereço para correspondência:
Marcus G. Bastos
Rua Ivan Soares de Oliveira, 234, Parque Imperial
36036-350, Juiz de Fora – Minas Gerais
E-mail: marcusgb@terra.com.br

Anemia e progressão da doença renal crônica

Comentários