J. Bras. Nefrol. 2009;31(1):48-54.

Aspectos Clínicos e Laboratoriais na Leishmaniose Visceral Americana

Rosangela Silva Rigo, Leonardo Rigo, Michael Robin Honer

Clinical and Laboratory Aspects in American Visceral Leishmaniasis (calazar)

 

Resumo:

Objetivo: buscar melhor entendimento das alterações clínico-laboratoriais da Leishmaniose Visceral Americana e posterior uso deste no manejo clínico desta doença. Método: estudo retrospectivo de dados de prontuários de 163 pacientes com LVA, tratados no Hospital Universitário/Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, entre 1999 e 2005. Resultados: As manifestações clínicas relatadas na admissão, de febre, esplenomegalia, hepatomegalia e emagrecimento, que foram mais comuns nos adultos, e o aumento de volume abdominal foi mais comum nas crianças (p<0,001). Houve uma diferença significativa (p<0,05) entre a presença de alterações na ureia e leucócitos e nos linfócitos (p<0,001) entre os pacientes adultos e crianças. O risco de persistência da creatinina sérica >1,3mg/dL após o tratamento foi maior em pacientes que já apresentavam na admissão seu nível elevado (RR=3,8, IC 95%), nos que havia presença de proteinúria (RR=7,4, IC 95%), naqueles com a associação de ambas (RR=7,1, IC 95%), e os tratados com anfotericina B vs antimonial (RR=8,9, IC 95%). Conclusão: Sendo assim, é importante o conhecimento da função renal basal e a criação de um protocolo a ser seguido quando do diagnóstico da LVA, uma vez que a doença renal pode aumentar a morbimortalidade destes pacientes.

Descritores: Leishmaniose visceral americana. Aspectos clínico-laboratoriais. Função renal. Tratamento. Nefrotoxicidade.

Abstract:

Objective: To seek out a better understanding of clinical and laboratory alterations in American Visceral Leishmaniose (AVL), for subsequent use in clinical management of the disease. Methods: a retrospective study of medical records from 163 patients with AVL, treated at the University Hospital of the Federal University of Mato Grosso do Sul, from 1999 to 2005. Results: Of the clinical manifestations upon admission, fever, splenomegalia, hepatomegalia and weight loss, were the most common among adults; and an increase in abdominal volume was the most common in children (p<0.001). There was a significant difference (p<0.05) between the presence of alterations in urea and leukocytes and in lymphocytes (p<0.001) between adults and patients. The risk of serum creatinine remaining >1.3 mg/dL after treatment was greater in patients that presented a high level upon admission (RR=3.8, CI 95%), those that presented proteinurea (RR=7.4, CI 95%), those with an association of both (RR=7.1, CI 95%), and those treated with anphotericin B vs.
antimony (RR=8.9, CI 95%). Conclusion: Accordingly, it is important to thoroughly understand basal renal function and to create a protocol for diagnosis of AVL, since renal disease can increase morbidity and mortality for these patients.

Descriptors: Visceral leishmaniasis. Clinical and laboratory aspects. Renal function. Treatment. Nephrotoxicity

INTRODUÇÃO

A leishmaniose visceral tem uma distribuição cosmopolita, ocorrendo na Ásia, Europa, Oriente Médio, África e nas Américas. Na América Latina, onde é denominada leishmaniose visceral americana (LVA) ou calazar neotropical, foi descrita em 12 países, sendo que 90% dos casos ocorrem no Brasil. Na década de 90, aproximadamente 90% dos casos notificados de leishmaniose visceral ocorriam na região Nordeste do país. À medida que a doença se expandiu para outras regiões, a situação vem se modificando.

No período de 2000-2002, a região Nordeste reduziu a sua participação nos casos de leishmaniose no país, de 90% para 70%. No Brasil, a doença vem apresentando mudanças importantes no padrão de transmissão nos últimos anos. Inicialmente, sua aparição predominou nos ambientes rurais e periurbanos, mas, recentemente, surgiu em centros urbanos1. Os casos notificados de LVA entre 2000 e 2005 concentram-se em pessoas residentes nos estados da região Nordeste do país. Durante esse período, o Estado de Mato Grosso do Sul manteve-se entre a 7ª e a 9ª posição de representação entre os estados brasileiros2.

Campo Grande está entre os centros urbanos que, num período recente, têm apresentado números crescentes em casos de LVA. O primeiro caso autóctone ocorreu em 2000. No período de 2002 a 2005, ocorreu um crescimento no número de pessoas residentes diagnosticadas por ano, passando de 22 para 154. Em 2002, os casos em Campo Grande correspondiam a 11,9% dos casos notificados no Estado de Mato Grosso do Sul; em 2005, esse percentual aumentou para 64,7%2.

Segundo Gama et al3, a grande maioria dos indivíduos que se infectam permanece assintomática, e os fatores que determinam a gravidade das manifestações clínicas estão relacionados à idade, estado nutricional e características imunogenéticas do indivíduo acometido. A variação das manifestações clínicas decorre do tempo de evolução, sendo as clássicas: febre, hepatoesplenomegalia, palidez cutâneo-mucosa e emagrecimento progressivo, podendo estar presentes tosse e diarreia4.

A suspeita diagnóstica leva em consideração os dados epidemiológicos e os aspectos clínicos e laboratoriais apresentados pelo paciente. O diagnóstico definitivo se dá pela confirmação da presença do parasito, detectado por exames laboratoriais de aspirado da medula óssea e reação de imunofluorescência indireta5.

No Brasil, como forma de tratamento da LVA, é recomendado o uso do antimonial pentavalente. No caso de falha destse, é indicado o uso da anfotericina B1. São descritas como reações adversas causadas pelos antimoniais: a leucopenia, arritmia cardíaca, comprometimento renal com elevação da ureia e creatinina, hepatotoxicidade com elevação das enzimas hepáticas alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST), pancreatite com elevação da amilase e lipase1,6,7.

As reações adversas da anfotericina B são: flebite, cefaleia, febre, calafrios, astenia, vômito, hipotensão, alterações cardiovasculares devido à hipocalemia e hipomagnesemia, além de acidose tubular renal e alteração da filtração glomerular1,8,9.

Com relação ao método indireto de avaliação do comprometimento da função renal, dois bons indicadores são a elevação da creatinina sérica e a presença de proteinúria10.

Uma vez que a LVA é uma doença emergente e de grande importância no que diz respeito à saúde pública, faz-se necessário maior conhecimento da mesma.

Com o objetivo de proporcionar um melhor entendimento das alterações clínico-laboratoriais da LVA e o uso deste entendimento no manejo clínico dos pacientes, foi realizado um estudo retrospectivo dos casos atendidos no Núcleo Hospital Universitário (NHU) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no período de janeiro de 1999 a dezembro de 2005.

PACIENTES E MÉTODOS

O estudo foi desenvolvido no Núcleo Hospital Universitário (NHU) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, centro de referência ao tratamento de leishmaniose no estado. Foram revisados 163 prontuários com diagnóstico de LVA, no período de janeiro de 1999 a dezembro de 2005. Consideraram- se casos positivos os pacientes que possuíam registro no prontuário de confirmação do diagnóstico de LVA através de esfregaço de aspirado de medula óssea e/ou sorologia pela reação da imunofluorescência indireta (RIFI) ≥1:80, além dos que foram tratados pelo diagnóstico clínico epidemiológico, considerando a zona endêmica e os achados clínicos11.

Os dados dos pacientes foram coletados a partir do prontuário médico. Na ficha de coleta dos dados, constavam: procedência, sexo, idade, principais sinais e sintomas na admissão, medicamentos utilizados no tratamento e exames laboratoriais de admissão e de seguimento durante o tratamento e até 21 dias após a alta. Para melhor distribuição das idades nas tabelas, consideramos como crianças os indivíduos com idades variando de 0 a 10 anos incompletos.

Os dados coletados na pesquisa foram armazenados e analisados no programa Excel®. Os dados de faixa etária e principais sintomas e sinais identificados na admissão estão apresentados em frequência e percentual, e os dados laboratoriais, em média e desvio padrão – DP. Para comparar diferenças nas frequências dos sintomas e sinais das alterações laboratoriais, entre crianças e adultos, foi utilizado o teste de qui-quadrado, com nível de significância p<0,05. Para avaliar a persistência da creatinina sérica elevada no pós-tratamento, calculouse o Risco Relativo, com intervalo de confiança de 95%.

O projeto teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

RESULTADOS

A distribuição por faixa etária dos pacientes do estudo é apresentada na Tabela 1. O maior número de atendimentos no período do estudo foi de crianças com menos de 10 anos, seguido pelo da faixa etária de 20 a 29 anos.

Na Tabela 2, estão os principais sintomas e sinais identificados na anamnese de admissão dos pacientes. As manifestações clínicas relatadas na admissão se mostraram semelhantes para adultos e crianças, com exceção dos sintomas de febre, esplenomegalia, hepatomegalia e emagrecimento, que foram apresentados com mais frequência por adultos, e do aumento de volume abdominal, mais comum em crianças (p<0,001).

O diagnóstico através de esfregaço de aspirado da medula óssea, realizado em 127 pacientes (77,9%), teve uma positividade de 78,7%, com presença de formas amastigotas. Em cem pacientes (31,3%), realizou-se o teste sorológico de RIFI, sendo 87,0% positivos, Nos outros oito casos, provavelmente o critério de diagnóstico foi o clínico epidemiológico, pois não havia anotações de coleta ou resultado de exames. Em 71 prontuários (43,6%), havia anotações da realização de dois meios laboratoriais para confirmação diagnóstica.

Para realizar o tratamento da LVA, 93,9% (153/ 163) dos pacientes foram internados para receber medicação, os outros 6,1% (10/163) receberam tratamento ambulatorial. O tratamento inicial consistiu da administração de antimonial pentavalente em 158 pacientes (96,9%), sendo que em cinco (3,1%) dos casos, foi aplicada a anfotericina B convencional. Entre os pacientes que utilizaram antimonial, 10,8% (17/158) deles tiveram falhas na resposta ao tratamento, seja por não ocorrer o desaparecimento dos sinais e sintomas clínicos ou pela presença de hepatotoxicidade, havendo a substituição terapêutica do antimonial pela anfotericina B. Todos os pacientes tiveram alta por cura clínica, tendo ocorrido desaparecimento dos sinais e sintomas clínicos; exceto dois (1,2%) que evoluíram a óbito durante a internação.

As principais alterações encontradas nos exames laboratoriais de admissão dos pacientes estudados são apresentadas na Tabela 3. Houve uma diferença significativa (p<0,05) entre a presença de alterações na ureia e leucócitos e nos linfócitos (p<0,001) entre os pacientes adultos e crianças. Já a presença de alterações da albumina, globulina, AST, ALT, hematócrito, hemoglobina e plaquetas foi semelhante nos dois grupos. As alterações dos níveis de creatinina sérica, amilase e lípase foram mais acentuadas nos exames de adultos, enquanto as alterações da fosfatase alcalina foram mais presentes nos resultados de crianças. Entretanto, esses fatores não representaram uma diferença estatística entre os grupos etários.

Na Tabela 4, é apresentada a persistência da creatrinina sérica > 1,3mg/dL no pós-tratamento dos pacientes adultos, que realizaram exames na consulta de retorno até 21 dias após o término do tratamento. O risco de persistência da creatinina sérica >1,3mg/dL após o tratamento (persistência essa indicativa de uma alteração da função renal) foi maior em pacientes que já apresentavam seu nível elevado na admissão (RR=3,8, IC 95%). O risco foi ainda maior naqueles que apresentavam presença de proteinúria (RR=7,4, IC 95%), assim como nos casos de presença de creatinina sérica elevada, associada à proteinúria (RR=7,1, IC 95%) nos exames admissionais.

O maior risco da manutenção de níveis elevados de creatinina ocorreu nos pacientes tratados com anfotericina B (RR=8,9, IC 95%), em contrapartida aos tratados com antimoniato.

DISCUSSÃO

No grupo estudado, a faixa etária mais acometida foi a de 0 e 9 anos, com 53,2% dos casos, superior aos dados de 40,1% (410/1.023) e 32,5% (110/338) para o Estado de Mato Grosso do Sul e Campo Grande, respectivamente (sendo esses dados estaduais e municipais relativos ao mesmo período no qual o presente estudo foi realizado, fornecidos pelo Setor de Vigilância Epidemiológica da Leishmaniose da Secretaria de Estado de Saúde).

Acima, também, dos percentuais dos estudos realizados em Três Lagoas, MS12 (35,6%) e região metropolitana de Belo Horizonte, MG13 (42,9%).

Nas regiões Norte e Nordeste do país, estas faixas etárias representam 64,8% e 61,2% dos casos, respectivamente.

Não só nos estudos no Brasil as crianças são mais acometidas. Um estudo na região mediterrânea14 também relata incidência maior nestas quando comparadas a faixas etárias maiores. Outra faixa etária que se destacou foi a de 20 a 29 anos, com 11,0% dos casos, próxima aos dados de 10,2% (104/1.023) e 13,9% (47/ 338) para o Estado de Mato Grosso do Sul e Campo Grande, respectivamente (dados fornecidos pelo Setor de Vigilância Epidemiológica da Leishmaniose da Secretaria de Estado de Saúde), mas abaixo dos 20,1% dos estudos de Três Lagoas, MS12 e dos 21,7% na região metropolitana de Belo Horizonte, MG13.

As manifestações clínicas mais frequentemente relatadas na admissão dos pacientes do estudo foram: febre, esplenomegalia, hepatomegalia, emagrecimento e aumento de volume abdominal; com percentuais diferentes entre adultos e crianças. Estas manifestações clínicas também foram descritas por outros autores, com percentuais variáveis entre o achado de cada autor5,12,13,15-17. Neste estudo, o aumento de volume abdominal foi descrito em apenas 35,6% das crianças, o que pode ter um reflexo no menor registro de hepatoesplenomegalia, se comparado com dados dos autores aos quais nos referimos anteriormente.

A positividade apresentada nos métodos diagnósticos, aspirado de medula óssea e imunofluorescência indireta, 78,7% e 87,0%, respectivamente; são semelhantes aos encontrados por outros autores5,12,16. Grech et al 200014 sugerem que não há diferença entre a sensibilidade do exame do aspirado de medula e da imunofluorescência indireta, mas que o emprego de ambos tem uma sensibilidade > 95%.

Para o tratamento da LVA no Brasil, o Ministério da Saúde recomenda o antimoniato de meglumine1. Neste estudo, o seu uso foi em 96,9% dos casos, com uma falha em 10,8%, enquanto o estudo em Três Lagoas, MS12, mostrou uma falha de 43% nos resultados terapêuticos, decorrente de dose inadequada da medicação.

Um estudo realizado com diferentes esquemas de doses de antimonial demonstrou que a dose e duração do tratamento são importantes para obtenção da cura da LVA18. Na Índia e outros países daquela região, está descrita a presença de resistência ao antimonial19. No presente estudo, a dosagem de antimonial foi semelhante tanto para os pacientes que obtiveram cura quanto para os quais ocorreu falha terapêutica.

Em estudo com 450 crianças no Ceará20, a alteração da hemoglobina esteve presente em 83,1% dos casos, valor abaixo dos 98,7% encontrados neste estudo. Esse mesmo estudo cita dados da OMS nos quais a diminuição dos níveis de hemoglobina é vista em 98% dos casos. A diminuição dos níveis de hemoglobina foi detectada em 99,5% dos casos estudados por Queiroz et al16, que descrevem como origem: a diminuição da produção de glóbulos vermelhos pela medula óssea, sequestro esplênico, anemia hemolítica, parasitose intestinal ou deficiência de ferro. Estes autores descrevem leucopenia (85%) e neutropenia (74%), causadas, provavelmente, devido ao hiperesplenismo com ou sem hipoplasia ou depressão da medula óssea e hemofagocitose.

Venkat21 descreve trombocitopenia em 64,7% dos pacientes, semelhantes aos 68,4% do estudo de Queiroz et al16. O número de plaquetas pode ser um fator preditivo para hemorragias severas, sendo uma das causas de morte e, portanto, devendo ser cuidadosamente monitorizado.

Os pacientes estudados em Três Lagoas, MS12, apresentaram 75,8% de diminuição dos níveis de hemoglobina, sendo que, entre as crianças de 0 a 4 anos, ocorreu leucocitose em 42,0%.

Quanto à presença de alterações hematológicas em nosso estudo, nas crianças, as alterações mais frequentes foram no hematócrito e na hemoglobina, porém sem diferença significativa (p>0,05) quando comparadas aos adultos.

Isso pode justificar a maior presença de palidez e anemia nos sinais observados na admissão das crianças. A presença de leucopenia teve maior significância para os adultos (p<0,05), enquanto a linfocitose teve maior significância para as crianças (p<0,001).

Estudo realizado por Salgado Filho et al22 demonstrou a presença de proteinúria em 90,9% dos pacientes, hematúria em 63,3% e leucocitúria em 54,5%. Na avaliação do grau de comprometimento tubular proximal, verificou-se que 45,4% dos pacientes apresentavam aumento da proteína carreadora de retinol e 81,8% apresentavam níveis elevados de microalbuminúria.

No presente trabalho, houve restrição quanto à avaliação do exame de urina e mesmo de ureia e creatinina pela não realização destes exames, assim como quanto à avaliação tubular proximal, que não é realizada no NHU.

Com relação aos exames de avaliação da função renal, foi observado, através da dosagem sérica de ureia e creatinina, um maior percentual de alterações séricas em adultos (21,6% e 25,0%, respectivamente) do que em crianças (4,5% (p<0,05) e 11,8%, respectivamente). É possível que a maior alteração na função renal nos adultos seja decorrente de possíveis comorbidades, uma vez que, em nosso estudo, só avaliou-se a LVA. Além disso, o registro de outras comorbidades nos prontuários era, infelizmente, muito pobre para realizar a uma avaliação. Através da creatinina sérica e da proteinúria qualitativa, é possível, de forma indireta, avaliar a função renal21,23,24.

Estudos sobre a nefrotoxicidade da anfotericina B revelaram ser importantes a dose utilizada e a duração do tratamento, sendo esta nefrotoxicidade acentuada pela associação com outras medicações com potencial nefrotóxico25,26.

Além destes efeitos nefrotóxicos, a anfotericina B pode apresentar febre alta, tromboflebite, hipocalemia severa, disfunção renal e até morte8.

Em estudo prospectivo20 com 50 pacientes com LVA, as anormalidades laboratoriais sugestivas de envolvimento renal foram frequentes. A proteinúria ocorreu em 57% dos pacientes. Anormalidade do teste de acidificação urinária foi demonstrada em 12 dos 18 pacientes estudados, antes da terapia com n-metil glucamine. Interessante foi a demonstração do envolvimento tubular intersticial e glomerulonefrite proliferativa na histologia renal de sete pacientes avaliados. A reversão da lesão renal foi observada, em geral, um mês após tratamento e cura da LVA.

Esta reversão também ocorreu no presente estudo.

Raí et al27 estudaram 27 pacientes que apresentaram disfunção renal após terapia com antimoniato e observaram que oito destes apresentavam comprovação diagnóstica de calazar, enquanto os demais apresentam outras patologias.

Dos dez que fizeram biópsia renal, seis tinham necrose tubular; um, proliferação mesangial e três, biópsias normais.

Estudo em material de patologia e biopsia renal de 21 pacientes com LVA demonstrou um infiltrado inflamatório intersticial difuso de linfócitos e células plasmáticas.

No geral, os glomérulos não mostraram nenhuma alteração importante. Estas alterações intersticiais normalmente parecem não determinar manifestações clínicas28.

Não foi possível uma avaliação do acometimento renal após o tratamento nas crianças estudadas, por essas não possuírem exames de controle. Entretanto, nos adultos, o comportamento da proteinúria e da creatinina sérica pôde ser observado desde a admissão, durante o tratamento e no pós-tratamento na maioria dos pacientes. Desta forma, foi também possível avaliar o provável potencial nefrotóxico do glucantime e da anfotericina B.

Pelos dados da Tabela 4, podemos supor que a própria Leishmania pode provocar lesão renal, visto as alterações da creatinina sérica e a presença de proteinúria na admissão, e que, em alguns casos, apresentaram remissão com o tratamento. A nefrotoxidade da anfotericina B, utilizada no tratamento, pode ser vista com a persistência das alterações da creatinina sérica no pós-tratamento. Observou- se que o paciente que apresentava proteinúria na admissão tinha 7,4 vezes mais chances de apresentar alterações na creatinina sérica no pós-tratamento. Quando a creatinina estava alterada na admissão, a chance de manter-se alterada era de 3,8 vezes com relação à média. E, quando ambos os marcadores de lesão renal estavam alterados, a chance de a alteração permanecer ao final do tratamento subia para 7,1vezes.

A chance de se encontrar creatinina sérica alterada nos exames pós-tratamento foi 8,9 vezes maior nos pacientes que usaram a anfotericina B para tratamento da LVA, comparada com os que usaram glucantime.

O acometimento renal do calazar pode ser devido tanto à ação direta da Leishmania no interstício renal quanto ao tratamento com as medicações leishmanicidas. Sendo assim, é importante ter conhecimento da função renal basal, solicitar exame qualitativo de urina, verificar comorbidades e realizar um monitoramento mais de perto da função renal, durante o tratamento e no pós-tratamento da LVA, uma vez que a doença renal pode aumentar a morbimortalidade destes pacientes. Seria importante implementar um protocolo a ser seguido após o diagnóstico da LVA.

REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde. Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. Brasília; 2003.

2. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde Sistema de informação de agravos de notificação [internet].
Brasília; 2006 [acesso em 7 abr 2008]. Disponível em: http://dtr2004.saude.gov.br/sinsnweb/novo/ 3. Gama MEA, Costa JML, Gomes CMC, Corbett CEP.
Subclinical form of the Americam visceral leishmaniasis. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2004;99:889-93.

4. Ministério da Saúde. Manual de recomendações para diagnóstico, tratamento e acompanhamento da co-infecção Leishmania-HIV. Brasília; 2004.

5. Pastorino AC, Jacob MA, Oselka G, Carneiro-Sampaio MMS.
Visceral leishmaniasis: clinical and laboratorial aspects. J Pediatr (Rio J). 2002;78:120-7.

6. Cuce LC, Belda Junior W, Dias MC. Alterações renais por hipersensibilidade ao uso de antimonil pentavalente (Glucamine®) na leishmaniose tegumentar americana: relato de um caso. Rev Inst Med Trop Sao Paulo. 1990;32:249-51.

7. Delgado J, MacÍas J, Pineda J, Corzo JE, González-Moreno MP, de la Rosa R, et al. High frequency of serius side effects from megalumine antimoniate given without an upper limit dose for the treatment of visceral leishmaniasis in human immunodeficiency virus type 1 infected patients. The Am J Trop Hyg. 1999; 61:766-9.

8. Sundar S, Chatterjee M. Visceral leishmaniasis current therapeutic modalities. The Indian J Med Res. 2006;123:345-52.

9. Mohan S, Ahmed S, AlimohammadiB et al. Proteinuria lowers the risk of amphotericin B associated hypokalaemia. J Antimicrob Chemother. 2007;60:690-3.

10. Manfro RC, Thomé FS, Veronese FJV et al. Insuficiência renal. In: Barros E, Manfro RC, Thomé FS, Gonçalves LF.
Nefrologia: rotinas, diagnóstico e tratamento. 3 ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. p 347-364.

11. Ministério da Saúde. Leishmaniose visceral grave: normas e condutas. Brasília; 2005.

12. Oliveira ALL, Paniago AMM, Dorval MEC, Oshiro ET, Leal CR, Sanches M, et al. Foco emergente de leishmaniose visceral em Mato Grosso do Sul. Rev Soc Bras Med Trop.
2006;39:446-50.

13. Silva ES, Gontijo CMF, Pacheco RS, Fiúza VOP, Brasil RP.Visceral leishmaniasis in the metropolitam region of Belo Horizonte, State of Minas Gerais, Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2001;96:285-91.

14. Grech V, Mizzi J, Mangioni M, Vella C. Visceral leishmaniasis in Malta – an 18 year paediatric, population based study. Arch Dis Child. 2000;82:381-5.

15. Pedrosa CMS, Rocha EMM. Aspectos clínico e epidemiológicos da leishmaniose visceral em menores de 15 anos procedentes de Alagoas, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop.
2004;37:300-4.

16. Queiroz MJA, Alves JGB, Correia JB. Visceral leishmaniasis: clinical and epidemiological features of children in an endemic area. J Pediatr (Rio J). 2004;80:141-6.

17. Rey LC, Martins CV, Ribeiro HB, Lima AAM. American visceral leishmaniasis (kala-azar) in hospitalized children from an endemic area. J Pediatr (Rio J). 2005;81:73-8.

18. Silveira FT, Pingarilho DA, Duarte RR, Gabriel MD, Dias MGS, Moura MPSA, et al. Avaliação de três esquemas terapêuticos com antimoniato de N-metyil-glucamina no tratamento da leishmaniose visceral no estado do Pará, Brasil. Rev Inst Med Trop Sao Paulo. 1993;35:177-81.

19. Guerin PJ, Olliaro P, Boelaert M, Croft S, Desjeux P, Wasunna MK, et al. Visceral leishmaniasis: current status of control, diagnosis and treatment, and proposed research and development agenda. Lancet Infect Dis. 2002;2:494-501.

20. Dutra M, Martinelli R, Carvalho EM, Rodrigues LE, Brito E, Rocha H. Renal involvement in visceral leishmaniasis. Am J Kidney Dis. 1985;6:22-7.

21. Venkat KK. Proteinuria and microalbuminuria in adults: significance, evaluation, and tratament. South Med J.
2004;97:969-79.

22. Salgado Filho N, Ferreira TM, Costa JM. Envolvimento da função renal em pacientes com leishmaniose visceral (calazar). Rev Soc Bras Med Trop. 2003;36:217-21.

23. Cho BS, Kim SD, Choi YM, Kang HH. School urinalysis screening in Korea: prevalence of chronic renal. Pediatr Nephrol. 2001;16:1126-8.

24. Fisher MA, Talbot GH, Maislin G, Mekeon BP, Tynan KP, Strom BL. Risk factors for amphotericin B associated nephrotoxicity. Am J Med. 1989;87:547-52.

25. Park YH, Choi JY, Chung HS, Koo JW, Kim SY, Namgoong MK, et al. Hematuria and proteinuria in a mass school urine screening test. Pediatr Nephrol. 2005;20:1126-30.

26. Harbarth S, Pestotnik SL, Lloyd JF, Burke JP, Samore MH.

The epidemiology of nephrotoxicity associated with conventional amphotericin B therapy. Am J Med. 2001;111:528- 34.

27. Rai US, Kumar H, Kumar U. Renal dysfunction in patients of kala-azar treated with sodium antimony gluconate. J Assoc Physicians India. 1994;42:383.

28. Duarte MI, Silva MR, Goto H, Nicodemo EL, Amato Neto V.
Interstitial nephritis in human kala-azar. Trans R Soc Trop Med Hyg. 1983;77:531-7.

1 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campo Grande-MS, Brasil, 2Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande – Campo
Grande-MS, Brasil, 3Universidade Católica Dom Bosco – Campo Grande-MS, Brasil

Endereço para correspondência:
Rosangela Silvia Rigo
Rua Ouro negro, 1387
Jockey Club – Campo Grande-MS, Brasil
79080-270
E-mail: lrigo@terra.com.br

Aspectos Clínicos e Laboratoriais na Leishmaniose Visceral Americana

Comentários